Cada pessoa tem uma digital, particular e intransferível,
nasce com ela. Há quem diga, e por aí já ouvi, que nascem também as pessoas com
uma história escrita nas estrelas e de quando em quando alguém aqui as lê
direcionando os efeitos e sentidos ao personagem que nos cabe. A mim,
particularmente, a palavra personagem me incomoda, senão nas minhas novelas,
quando à eles translado sensações minhas e de outrem a fazer caricaturas
daquilo que vivemos e negamos.
Antigamente, e é somente força de expressão
estilística, as sensitividades importavam somente ao estado de espírito a qual estivéssemos
submetidos. Hoje, a ciência, no alto de seus protocolos e epifanias, a custas
de explicações racionais procura diluir a clivagem direta que há
inexoravelmente entre o que sentimos com o biológico, isto partindo do
principio de quem nem tudo que sentimos ainda pode ser explicado, ou melhor –
entendido, compreendido como escape as dores que deveras nos assolam.
Considerar então, no bojo dessas questões uma aresta biológica, nos torna
vulneráveis a acreditar na conjuntura não duvidosa do que sintoniza corpo e
alma. Limitado a pequenez de minhas tortas ideias, penso que isso não ajuda
muito, só então reaciona a dualidade existencial e sentimental a qual estamos
dispostos em todos os sentidos. Não fosse assim, não fosse ligado o sentimento
ao biológico, não nos afagaríamos nos braços da mãe em tenra idade nem ativaríamos
os circuitos modelares que nos reveste ao simples toque da pessoa amada, entre
outros infinitos exemplos que não vem ao caso, senão às ideias...
O fato, é que estamos à disposição daquilo que
chamam de vida para dela desflorarmos florestas não mais virgens, fingindo como
se fossem para imaginarmos que somos capazes de viver nossa própria história.
Ouve-se muito dizer que é um pecado existencial transferir-se ao outro, doar-se
por completo. Dizem isso, vinculados à ideia de que é possível nada restar
dentro de nós quando se vive com intensidade. A mim, particularmente isso
atinge, porque muito bem sou definido quando me dizem que sou os extremos de
tudo e me envaidece ser assim em detrimento de um título que me honra (sem nem
ao menos saber se sou): escritor. Mas viver intensamente, se doar intensamente,
pode não querer dizer exatamente que você dispa-se de tudo e fique sem nada.
Conheço poucos resignados que tudo dão e nada cobram. Se não me foge a
lembrança seriam pessoas pacifistas que vieram ao mundo em missão, pessoas como
Chico Xavier, Francisco de Assis e poucos outros... E isso tem um preço, é
saber canalizar os sentimentos, sejam eles conjuntos ou não ao biológico,
nenhuma necropsia revelou isso em um ser humano singular como um dos
enunciados. Ao contrário, olhamos para eles e reativamos a ideia primeira desse
texto, a ideia de que somos particulares, únicos e intransferíveis como uma
impressão digital, mesmo que você se doe completamente, plenamente, virtuosamente,
desinteressadamente...
Convivo com pessoas um tanto preocupadas com o bem
estar, com a reforma íntima e que fazem disso o ponteiro da bússola que aponta
para o norte, porém, nem sempre as adversidades do caminho nos permitem seguir linearmente
a esse destino apontado. Talvez, o ato de saber discernir o certo e o errado, o
sul e o norte, já nos oriente de alguma maneira e sejamos portanto um dia
cobrados pela demora ou pelo inconcluso percurso, dado às leviandades que
cercam o caminho, assim como os afluentes de um rio em busca do mar. Aliás,
voltando aqui às questões conjuntas entre as dualidades dispares elencadas, há
muito tempo as condições ecológicas do planeta são responsáveis pelo percurso
contrário do Rio São Francisco, não sei se todos sabem, mas ele nem mais vai
bater no meio do mar como cantava Luiz Gonzaga antes de eu nascer.
Muitas vezes, as nossas condições, ou as condições a
qual estamos submetidos de uma ecologia ideológica, também nos impede de ir bater
no meio do mar, de desbravar o caminho como Indiana Jones e encontrar nossos
tesouros. Nunca esquecendo, portanto, que a tudo isso se deve o fato de sermos
emoção e não somente razão, e o equilíbrio entre estas que nos fomenta, é algo
tênue e quase imperceptível dado ao estado latente de condição existencial dos
dias de hoje, dos emergenciais dias de hoje; revelando de tal maneira que não é
possível ser calculista de forma a nos satisfazer plena e completamente. Talvez
daqui a um tempo seja, hoje homens são substituídos por caixas eletrônicos,
pessoas que morrem jajá poderão voltar aos palcos da vida através de programas
de computador... Mas eu ainda me surpreendo com o mais simples, isso ainda está
muito longe de mim, e no fundo eu até sou grato, ainda que através desses
mecanismos eu pudesse me defender como agora sem eles não posso. Mas posso ser
revelado, repito, como algo indecifrável e deveras intenso naquilo que sou.
Há um poema que gosto muito, de Fernando Pessoa em heterônomo
a Ricardo Reis e ele diz exatamente assim, prestem bem atenção, é uma receita:
Para ser grande, sê inteiro. Nada teu exagera ou
exclui, põe quanto és no mínimo que fazes. Assim, em cada lago a lua toda
brilha, porque alta vive.
Sabemos que Pessoa, foi um dos, senão o, poeta mais
desassossegado que já publicou na “nossa” literatura, ele tinha uma facilidade
inacreditável de passar para o papel aquilo que nós só sabemos sentir. Quando
eu utilizo nós, é pelo mero pretexto de querer acreditar que eu não sou o único
Fernando Júnior no mundo que está nesse momento pensando o que penso e sentindo
o que sinto. Me apraz acreditar que em algum lugar, se perto, se longe,
territorialmente ou ideologicamente, há uma sincronia daquilo que meus sentidos
todos possam se refletir nos sentidos de mais alguém. E voltando a Fernando Pessoa,
podemos elucidar as condições hermenêuticas e exegeses do seu poema, certamente
porque sem nenhuma pretensão ele fala de mim, antes mesmo de eu existir, se é
que existo. Ele martela a condição mais primária e provinciana do ato de haver,
de ser e de estar, condicionando-o a uma única possibilidade: ser tudo em cada
coisa!
Talvez um dos maiores pecados disseminados entre o
homem, causador dos dissabores para com o próximo, seja a não intensidade na
realização de seus atos. Eu não posso acreditar, embora esteja convencido da
indiferença, que alguém goste de alguém mais ou menos, que alguém faça uma
caridade mais ou menos ou que alguém viva mais ou menos. Negar os excessos é
uma coisa, negar as completudes é outra! As pessoas que pensam assim, ou
melhor, acham que vivem assim, vivem caminhando a esmo e quem assim caminha não
chega a lugar algum, como bem disse uma escritora que conheço, vai de contra as
leias naturais. E eu acredito nelas, porque existem momentos como canta Maria
Bethânia, em que a corda quebra, o carro para e o riacho fica fundo. São nesses
momentos em que você se apercebe diante de algum problema e vê que não é dono
do mundo, que todo seu amor próprio não basta, que toda sua autonomia
existencial é vã, porque dependemos sim do outro e estamos ligados em circuitos
indestrutíveis. Parar pode ser lei natural, regredir não. Sabendo disso, já me
alegra um pouco, embora que falsamente pelas condições de produção desta
procela, porque sei que não perco o que já conquistei. Mas assim como um bocado
de ideias incomodam, a ideia de estar parado também me desconforta. Eu preciso
acreditar que estou caminhando, se a passos de tartaruga ou de garça, mas quero
estar caminhando.
Eu vejo o tempo passando como um rio, e as águas do
rio não se renovam, não se reciclam, nem sequer movem moinhos, elas podem até
não se perderem, porque dizer isso seria o mesmo que desafiar o principio de Lavoisier,
mas nunca mais fazem o mesmo caminho, por isso é bom ir a pé prestando atenção
na estrada que talvez nunca mais possamos percorrer. É mais ou menos similar
aos nossos sonhos. Não existe dor maior, nem a de parir, que a de abnegar de um
sonho. Sonhos são sementes que você planta no plano das ideias e rega-as com
atos, esforços e superações para realiza-los, para colher dessas sementes
frutos com sabores de vitória. Mas assim como as pestes da terra, existem as
pestes das ideias que de quando em quando depreciam e contaminam nossos sonhos.
Alguns são adiados, estes doem menos, porque encaramos este estágio como um
princípio adormecido e nos esforçamos para crer em seu despertar nos tornando
com isso, pessoas capazes de viver esperando dias melhores, sonhos realizados.
Já é muita coisa! Se alguém me ouve ou ler, ainda que não entenda eu agradeço,
mas também lamento, porque nem eu sei o que estou dizendo quando “correm os
meus dedos longos em versos tristes que invento” desse monólogo inacabado.
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