Meu bom irmão eleito,
que saudade.
Espírita, vivi todo
esse tempo à espera de sua carta que nunca veio cansando aquela velha máxima de
que o telefone só toca de lá para cá. Como é difícil estabelecer um contato com
o silêncio, ouvindo a nossa própria voz e fazendo de contas que ela é, também a
sua, falando aos nossos corações... Foi nesses anos esmaecidos pelas procelas
que nos acometem que recebi no camarim de Elba Ramalho uma mensagem sua no meu
celular pedindo para que o considerasse o irmão que a vida lhe negara, lembra?
Eram tempos difíceis, mas nada lhe parecia impossível! Rapidamente você conseguiu
destruir a imagem sisuda do “brinquedo do cão”... Essa missiva com M de memória
certamente se alicerçará assim: cheia de reticências... Você foi uma das
primeiras pessoas a confiar na minha escrita, me incentivou a escrever uma
novela, e falou-me da importância desses registros grafados de maneira singular.
Falávamos tanto nos capítulos – da vida e do livro, enquanto comíamos aquele
ovo cheio de lipídios a entupir nossas artérias... E era tão gostoso. Até hoje
ainda o faço, mas não é tão gostoso quanto àqueles que saboreei em sua
companhia. Acho que perdi-me no Tempo Tempo Tempo Tempo.
Na verdade, desde que
você se foi, tenho pensado muito na quantidade de amigos que descobri em seu
entorno. Aquela despedida ao pingo do meio dia, ou melhor “ameidiinha” me
deixou muito confuso. Você sabe que quase não os encontro mais?! Eles quase nem
falam em você... E quando falam é querendo ser você... Tsc Tsc... Devem ter se
acostumado com a sua assombrosa ausência. Eu sei que essa não é uma boa
notícia, mas por aqui pouca coisa evoluiu, sobretudo se pensarmos essa coisa
referindo-se à especificamente à conduta humana.
Eu consegui terminar o
curso de Letras, fiz uma pós e estou voltando para fazer Letras novamente,
dessa vez com habilitação em Língua Portuguesa. Finalmente seu conselho faz
sentido, mas sinto que perdi muito tempo, até envelheci e já me cansei de
algumas babaquices que ontem faziam sentido, deixei passar algumas
oportunidades... Merci? Mas sei também que o mesmo cara que cuida de você aí,
olha por mim aqui. Continuo ouvindo os mesmos discos e concordando com Elis
Regina, mas que nunca: nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não
enganam, não.
É meu irmão... São
tantos assuntos... Tantos muitos que nem sei como falar... Não podíamos ter
vivido melhor. Concorda? Você continua representando a maior expressão de força
em nosso meio. Não o tenho como modelo para tudo, é claro, mas você sabe do que
estou falando e isso é outra história. Libertário, canhestro, pai, irmão, amigo
e mestre, eram tantos em um só que lhe tornaram incomparável. E isso ainda
incomoda! De quando em quando vejo atos falhos nos discursos que ecoam
invocando seu nome em vão. Tenho muita curiosidade em saber como você vive
hoje, e lamento por aqueles que não o conheceram... Tantas vezes nossa mãe e eu
pedimos para sonhar com você e todos os dias acordávamos tomando um choque de
realidade desconstruindo todos os pensamentos que tentamos maquiar, manobrar,
mudar...
Por aqui pouca coisa
mudou. Repito. Não me entenda, entretanto, como pessimista ou dramático, mas
lembre daquela sua frase “se as mudanças acontecem sempre em favor do pior, que
permaneçam as coisas como estão” e deixe Caetano cantar que nada há de novo
sobre o sol. As pessoas continuam se expondo nas redes sociais sem nenhum zelo
por suas intimidades. Estão cada vez mais viciadas, dependentes e carentes... Para
completar até andam caçando Pokémon, ricocheteadas pela infantilidade tardia e
inoperante. Eu diria que estão bem piores que você, que costumava fazer um fake
fingindo sair de circulação no mundo digital, mas continuava lá de olho em tudo.
Desculpe contar esse segredo, mas ele já não é mais nosso, apenas. Estamos nos
aproximando da política, aquela “degeneração gordurosa das organizações da
incompetência” e como é de costume, aqui, as pessoas passam a viver em função
disso e oportunizam-se para fazer ecoar todo tipo de mazela social. Desde a
caça aos pobres até os sem fim...
No trabalho, para quem
abraçou nosso ofício, continuamos naquela vida severina, mas gratos pelo pão e
pelo café de todo dia. Em todos os setores dessa existência continuamos
medíocres: opressores e oprimidos pela radicalização violenta de tudo com
todos. Continuamos maledicentes, receptivos a doenças no corpo e na alma – o
que é pior ainda. Quase não temos tempo para ajudar ninguém, afinal, ninguém
nos ajuda. Cada dia está mais difícil professar a fé, ainda bem que você não
teve que passar por isso porque você foi quase o revés de Clarice Lispector em
nosso meio, não é?
Pois, pois... Muito
pouco evoluímos. Mas eu estou feliz, na medida do possível. Tenho uma filha
linda, se chama Walquiria – igual minha primeira novela, àquela que lhe
dediquei, mas não lhe deu tempo de ler. Depois dessa fiz outra. Não, não outra
filha, outra novela. Ainda nem ao menos paguei Semântica para brincar assim com
você. Muito raramente, também, encontro sua filha, mas ela cresceu e como qualquer
adolescente que descendesse geneticamente de você, carregaria traços tão seus
que custa olhá-la sem se emocionar. Acho que tudo isso se resume em uma
palavra: saudade. E junto dela, a necessidade sôfrega de manter-lhe vivo nos
livros, cachimbos, uísques e escaninhos.
PS.: Se você encontrar
Ranielle, por favor diga-lhe... Que permanecemos por aqui “na sagrada saudade
que deixa continuar.”