terça-feira, 24 de novembro de 2015

Exumar cadáver fede, parte II OU "Quem me leva aos meus fantasmas?"

Hamlet de Laurence Oliver

,mas a inquietude apoderava-se dos labirintos da mente daquele indefeso de si como enunciara alguém, refém e algoz de sua própria perversidade de ontem, ele nem mesmo conseguia sossegar. Talvez por nunca se arrepender do que faça, mas lamentar sempre o que deixou de fazer, ele olhou para trás. Sabia que podia transformar-se numa estátua de sal, mas preferiu correr o risco porque a Morpheu parecia-lhe elegante demais, e Orpheu sem Eurídice, já dizia o poeta, era algo incompreensível. Pedra rolada... Assim, portanto, arriscou driblar a covardia que há muito andava de braços com a conveniência sacrossanta e o respeito ungido como se fosse uma flor para dois maridos. Ele então levantou-se com esforço, escorregou uma ou duas vezes no tapete lamacento que em 2007 havia sido ricocheteado por orquídeas brancas. Ele nem sabe se eram brancas, na verdade, mas preferiu imaginar que fossem. Transmutou os pensamentos na absurda coragem que lhe alvoroçava o peito desnudo e arrepiado; apoderou-se de enxada. Queria esse poder, desejava mais que tudo e ninguém poderia impedí-lo. O cabo roliço e liso revelavam uso e destreza para com as covas e alcovas. Não sua, é claro. Jamais havia tentado algo parecido, mas de alguém que melhor lhe representasse em cada procela que fazia seu barco redemoinhar sob as ondas salgadas das lágrimas corridas em quase dez anos, menos cinco ensinaram-lhe os matemáticos a desfazer essa conta... Mas ao leme o Capitão estava sempre imponente, independente dos números, dos anos. Esperava avistar as locas em alto MaR e ouvir o canto da sereia. O canto que diz a lenda, escraviza e mata após seduzir, e ele seduzido tirou os olhos do cabo e mirou a base oxidada pelas razões a qual renega e nega, nega e nega igual a Pedro. Num abrupto solavanco fez o primeiro corte na terra. Que dor terrível transpassara-lhe. Não mais havia flores, mas seu chão tremeu. Havia apenas uma inscrição em epitáfio que ele não conseguia ler; ou nem tentara. Tanto que lhe traduziram aquilo, mas ele não sabia ser covarde e por isso nem ligava os fatos. Se ele não fizesse aquilo, ninguém mais faria por ele. Fez então mais três cortes na terra, o mesmo representava três dias silenciosos e fúnebres em que sua alma saudava a Princesa de Aiocá ao longe na esperança que ela descesse a ribanceira e o resgatasse ou se deixasse resgatar. Quando ele avistou-lhe a cabeleira lembrou-se que há sempre uma parte de nós que a terra não come, que o tempo não leva, e ele precisava identificá-la de algum modo, mesmo que não mais a reconhecesse. Puxou-a. Era tarde demais! Suas mãos prendiam entre os dedos apenas os fios soltos, esmaecidos e sem trato. Alguma coisa havia sido desligada para sempre mas ele não aceitava. Não conseguiu nem chorar! Tentou retirar cada fragmento para que pudesse reconstituir o que um dia quebrou sem querer, mas a fronte esquecida pareceu-lhe estranhamente desconhecida, imaginou que algumas partes a terra e o tempo modificam, sim. Mas por que não o modificara também? Desejou estar também soterrado, mas estava congelado desde a última vez que a obliquidade do seu olhar alcançaram-na e sentiu-se diminuído por não ter sido compreendido por nenhum poeta, nem mesmo por aqueles que pareciam-lhe tão honestos. Mas não, nem Chico, nem Tom, nem Geraldo... Nada que eles cantavam simbolizava aquele instante. Era tudo tão inédito que a sequidão alcançou-lhe a garganta. A aridez da terra, agora representava-se não no solo calcinado, mas na ponte que ligava sua muda emissão vocal ao desconstruído coração que sozinho se reconheceu por uma calada e absurda justiça. Seu nome? Prometeu jamais esquecer, mas o sol não mais brilhava para si. Jurou em dor. Calou-se. Finou-se. 

sábado, 21 de novembro de 2015

Exumar cadáver fede

Ophelia - Everett Millais

Exumar cadáver fede! Era nisso pensava o Velho Viana no mesmo instante em que riscou seu último cigarro acompanhado de uma dose de uísque vencido com três pedras de gelo. Não fosse isso não teria percebido o tempo passando, porque ainda creditava um acréscimo de fé naquele acordo feito em 2007. Então a tela mental do ortodoxo indivíduo começou a matizar os tons desbotados das aulas ocasionadas por um propósito único de reaproximação de corpos. Ele gostava de ser observado e mais ainda se exibir frente àquela que sabia fazer versos e cartas delongadas denunciando a imaturidade e ingenuidade adolescente do corpo em ebulição, mas tinha também consciência de sua maldade e sentiu retroagindo ao primeiro plano em que se encontrava agora, um espasmo de medo pela amarga e lenta vingança que os anos lhe presenteara. A Princesa de Aiocá, agora, estava em seu palácio e parecia-lhe que debaixo d’água e por cima da areia, turvo era, porém mais calmo; embora oblíquo em sua visão parecesse um cataclisma equacionado na matemática errante e convocado pelo tempo que lhe restara dedicado a respirar-lhe na presença inexistente. Odofiaba! Ele também gostava de sofrer ao recordar tudo isso, mas de algum modo alimentava sua alma boêmia e embevecida por rememorar a saudade do que poderia ter sido. E tudo era confuso, sobretudo honesto, e isso o tornava mais confuso ainda, porque vivendo num mundo de aparências quem se cristaliza transparentemente corre o risco de quebrar-se e não mais, nunca mais voltar a ver o MaR. Sonoro, profundo e secreto... Ele ainda acreditava no mar e nos fazia crer que havia uma praia onde cada grão de areia pudesse representar um pedaço bi partidarizado de toda eloquência frenética que acometia aqueles instantes. Lembrou-se do bazar dos sonhos perdidos, aquele onde os relógios rodam para trás e as escadas fogem dos pés... Mas quantos nomes, cores e tamanhos assumira a Princesa quase dez anos depois? Parecia uma memória de vidas passadas, mas era assim que sua consciência bailava sobre o ritmo das águas negras e geladas daquele mar profundo que pedia-lhe: mergulha. Ele podia apenas escolher não pensar nisso, mas a involuntariedade do seu desejo lhe dominava mais e mais a cada tragada e cada gole seco do uísque diluído. Até que o cigarro amargou, quando apercebeu-se da piúba miudinha entre os dedos nicotinizados quase inertes, olhou pela janela que nem existia e viu que estava preso numa masmorra do castelo da Princesa. Não sabia se debaixo da água ou por cima da areia, já não sentia o pulmão e era... desesperador. Viu locas, pensou nos perfumes, espelhos, flores e serenatas e todas aquelas lembranças agrediam seu córtex pré frontal. Lembrou ainda que havia na geladeira uma taça com morangos, foi recuperá-los mas estavam mofados. Correu a vista pelo lar e a parede amarela se entrelaçava com a parede de pedra causando-lhe uma sensação obtusa de paralelismo temporal e espacial. Ouviu ao longe uma voz que profetizava o tempo semelhante a um rio que corre perenemente e teve mais medo ainda. Teve medo de ver o corpo distendido e soterrado nos escaninhos da alma embalsamada porque no fundo sabia que exumar cadáver fede.