Hoje eu vou falar dos contos de fadas, dessas
histórias fabulosas que enriquecem nosso celeiro literário; mas vou falar
sobretudo para pessoas que vivem sempre a espera de alguém que caiba no seu sonho,
de um príncipe encantado montado num cavalo alado.
Somos de uma cultura, onde as histórias contadas,
matizadas com a aquarela do autor fazem parte de nossas vidas. Todo mundo
conhece algum conto de fada e em algum momento de sua vida já sonhou que
pudesse dele fazer parte. O que normalmente não ocorre, isto porque faz parte
(ou pelo menos deveria) do ciclo biológico de nossa existência a fase chamada
de maturidade. Nesse instante, passamos a desacreditar dessas formas de magia e
damos vazão à realidade, embora esta nem sempre preencha os escaninhos da alma.
Não quero com isso que vocês pensem que estou destruindo a magia de um “pequeno
príncipe” por exemplo, eu mesmo sou fã. Mas uma coisa é ler uma obra e dela
extrair substratos para sua vida, outra é querer por fim a força adentrar aquele
universo ferindo inclusive os princípios mais básicos de ser simplesmente
aquilo que chamam de gente.
A esta ridicularização do fantástico, nos escreve
Cristiane Aquino em seu trabalho “Shrek: a apropriação carnavalesca do príncipe
encantado nos contos de fadas.” Aquino trás nas páginas de sua monografia as
manifestações carnavalescas nos contos de fadas. Com base em Bakhtin e outros,
ela mostra através do personagem Shrek a desconstrução do protótipo real de um
príncipe, de modo que este, de encontro aos clássicos contos de fadas, não
precisa ser perfeito, basta apenas que seja verdadeiro.
Sem adentrar hermeuticamente no conceito de “verdade”
é possível esboçar um olhar sobre as clássicas histórias, fabulosas histórias,
onde o protagonista (príncipe – encantado) descortina-se com um tipo físico perfeito
e para além do seu ideal de beleza um caráter fantástico. Onde tudo parece
perfeito e nada precisa ser mudado, há espaço para a carnavalização, ou seja, a
inversão desses valores e comportamentos ditos corretos e irreparáveis. Segundo
Aquino (2012) este carnaval consiste na inversão dos valores, na ridicularização
daquilo que é, geralmente, aceito pela sociedade. Rompendo desse modo, a visão
cristalizada de que para ser um conto de fadas, as personagens e os espaços da
narrativa deveriam apresentar-se como sendo perfeitos.
Temos então, um aporte teórico que da sustentação ao
“quereres” de Caetano Veloso, por exemplo. Temos ainda a possibilidade de
questionar o inquestionável, mesclando com seus oponentes, maneiras de mostrar
como o diferente e o outro assumem papéis de múltipla importância nos nossos
conceitos. Quando a princesa que espera pelo príncipe na mais alta torre do
castelo se depara com um Ogro (Shrek) ela tem duas possibilidades: ir ou ficar.
E por toda nossa vida, a estrada é sempre bifurcada, dicotomizada entre o certo
e o errado, o escuro e o claro, o amargo e o doce. E é graças a esta clivagem
existencial que podemos fazer nossas escolhas e seguir pela estrada ou pelas
bermas da estrada. Vestir-se de sonhos, nem sempre quer dizer que tenhamos que ser
reféns deles ou usa-los como escudo à realidade tacanha que nos aflora e
desflora sem pedir licença.
A escolha da princesa Fiona é que faz a diferença
nesse conto de fadas, é a partir do momento que ela decide ir que a narrativa
deixa de ser retilínea e linear e chega mais perto da vida real. Quando a obra
se carnavaliza, invertendo os padrões, ela nos ensina bem mais que os contos de
fada convencionais. Estes, geralmente apenas repetem as mesmas histórias com
personagens diferentes e “esta idealização de perfeição perpassa os séculos
tornando a beleza uma qualidade indispensável á realeza.” (Aquino, 2012)
A todos os homens, de todos os tempos, foi legado o
direito de fazer suas escolhas, em alguns momentos da História, esse direito
foi negado, questionado e até reprimido. Contudo, vivemos hoje, por mais que
algumas pessoas resistam a isso, um tempo emergente, onde os dias e as horas
passam sem nos darmos conta que é o tempo quem está passando. Somente através
da maturidade, da sabedoria somada com os anos e as procelas diárias, é que
seremos capazes de discernir os contos de fadas da vida real e carnavalizar o
que precisa ser carnavalizado. Chico Buarque de Holanda costuma de dizer que
enquanto as pessoas tem medo de mudanças, ele tem medo que as coisas não mudem.
O que de fato, vem a calhar quando se vive estático num mundo que gira, e a
cada volta tornamo-nos mais velhos, mais sábios, quem sabe...
Como eu disse que iria escrever em especial para as
pessoas que insistem em viver no mundo de fantasia, escondendo-se de si mesmo e
anestesiando sua própria realidade, gostaria de dizer que o tempo, as histórias
e a vida, não param nem regressam pela nossa incapacidade de viver e escolher o
nosso certo, a nossa verdade. E para melhor pensar em tudo que aqui disponho,
faço eco ao cancioneiro que nos revela ao modo de melhor pensar, Zé Ramalho:
Quanto tempo temos antes de voltarem aquelas ondas?
Que vieram como gotas em silêncio, tão furioso
Derrubando homens entre outros animais
Devastando a sede desses matagais
Devorando árvores, pensamentos...
Seguindo a linha do que foi escrito pelo mesmo lábio
Tão furioso
E se teu amigo vento não te procurar
É porque multidões ele foi arrastar.