Através de uma composição binária, elementar aos tratados teóricos literários do homem de todos os tempos, o conto de Andersen nos convida a mergulhar no fantástico mundo das possibilidades em que o Bem e o Mal assolam-nos quanto protótipo de seus estereótipos sacralizados no inconsciente coletivo de quem se dispõe a buscar sentido(s) para traçar seu próprio perfil.
A história atemporal é contada em terceira pessoa. Nestes escritos, a sombra, passa de uma elementar projeção do Eu (narrador) e assume sua própria identidade. O enredo segue com a dualidade antes enunciada, quando o dialogismo entre o sábio e sua sombra toma proporções fantásticas que maravilham o campo semântico do leitor. E por todas as demais categorias de análise a história se divide em pares opostos, quanto ao espaço (quente e frio) numa ótica geral, bem como quando trata-se de um espaço particularizado onde pois é descrita a cena magna da sombra desdobrando-se do corpo em busca de “novas verdades” numa casa, esta adentrada apenas pela sombra do sábio, dando-lhes assim, características vitais de autonomia literária.
Acredita-se que todo homem, ou coisa que exista, tenha uma sombra, basta para isso posicionarmos este homem ou tal coisa de encontro à luz para percebermos uma cópia negra em tamanhos e circunferências deveras proporcionais ao que lhe inerte em matéria. Contudo, nos diz o narrador na página 288 que “as sombras sempre desejam ter seus senhores como tela.” Justificativa que nos leva a acreditar a causa de todo homem ou coisa ter uma sombra, uma projeção ou uma dualidade, neste caso, paradoxal ao seu senhor.
E por nisso acreditar, podemos entender uma sombra como uma “personalidade” para não chamar de personificação de uma nova face de quem lhes projete. O homem, ou coisa que projete uma sombra seria à miúde uma Tese, que projeta uma Antítese para chegarmos a uma Síntese, tal qual num tratado dialético. E enveredando essa possibilidade, tomamos a benção ao narrador, quando ainda na página 288 denuncia que “uma nova sombra havia começado a crescer de suas pernas sempre que ele saia para o sol.” Denunciando através das palavras “novas” e “saia para o sol” o entendimento de algo inédito, nascente que já não mais era a mesma sombra em virtude do fato de seu senhor sair ao sol, ou seja, socializar-se. E se o fato de socializar-se nos causa o desprazer ou a necessidade de mostrar uma nova sombra, não seria o caso de questionar seu existencialismo? Todo homem então precisa inexoravelmente de algo que lhes projete, que lhes socorra ou denuncie uma outra realidade sucumbida nos escaninhos da alma.
Em determinado momento do conto, talvez no ápice da estranheza que maravilha nossos sentidos, o sábio perde a sombra e nem de encontro a luz consegue então vê-la, sentindo-se talvez um Drácula diante de um espelho, para mais tarde de encontro com sua antiga sombra, esta lhes contar o que havia dentro da casa (novo universo) descortinado à audácia de nele e por ele adentrar. Esta, quando em contato com o mundo novo, deixa-se ludibriar pelas novas sensações tácteis e não tácteis que contaminam a conduta de um homem ou até mesmo... de uma sombra.
A ascensão social da sombra, agora personificada aos olhos dos demais, nada mais é que a mesma história tantas vezes lida pelos pseudo-s afortunados que necessitam serem regidos pelo respeito e a vaidade capitalista. É assim desde a burguesia, ainda existente e será até quando o protótipo do homem não mudar.
Uma vez mais, a composição binária fará valer de que todo enredo, assim como em nossas vidas, tem dois caminhos. Agora entretanto, perto do final do conto, é quando o sábio, que há essas alturas já nem se mede o tamanho de sua sapiência, deverá submeter-se às humilhações de sua antiga sombra que agora quer ser seu senhor, reafirmando que com isso, este deveria prostar-se aos seus pés. Uma vez negado, tem o sábio, sua vida aniquilada num terrível calabouço.
Se nos compararmos ao sábio ou a sombra, é possível que nos identifiquemos comportamentalmente com os dois, pois sendo um só, revela-se multifacetado que a despeito de nossa covardia e de nossos olhos narcisistas enxergaremos nosso lado escuro apenas como uma sombra, e as sombras são apenas sombras...
...aonde vai o corpo vai a sombra nunca estamos sós...
(Dalto/Claudio Rabelo: Fafá de Belém)
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