Ophelia - Everett Millais
Exumar cadáver fede! Era
nisso pensava o Velho Viana no mesmo instante em que riscou seu último cigarro
acompanhado de uma dose de uísque vencido com três pedras de gelo. Não fosse
isso não teria percebido o tempo passando, porque ainda creditava um acréscimo de
fé naquele acordo feito em 2007. Então a tela mental do ortodoxo indivíduo
começou a matizar os tons desbotados das aulas ocasionadas por um propósito
único de reaproximação de corpos. Ele gostava de ser observado e mais ainda se
exibir frente àquela que sabia fazer versos e cartas delongadas denunciando a
imaturidade e ingenuidade adolescente do corpo em ebulição, mas tinha também consciência
de sua maldade e sentiu retroagindo ao primeiro plano em que se encontrava
agora, um espasmo de medo pela amarga e lenta vingança que os anos lhe
presenteara. A Princesa de Aiocá, agora, estava em seu palácio e parecia-lhe
que debaixo d’água e por cima da areia, turvo era, porém mais calmo; embora oblíquo
em sua visão parecesse um cataclisma equacionado na matemática errante e
convocado pelo tempo que lhe restara dedicado a respirar-lhe na presença
inexistente. Odofiaba! Ele também gostava de sofrer ao recordar tudo isso, mas
de algum modo alimentava sua alma boêmia e embevecida por rememorar a saudade
do que poderia ter sido. E tudo era confuso, sobretudo honesto, e isso o
tornava mais confuso ainda, porque vivendo num mundo de aparências quem se
cristaliza transparentemente corre o risco de quebrar-se e não mais, nunca mais
voltar a ver o MaR. Sonoro, profundo e secreto... Ele ainda acreditava no mar e
nos fazia crer que havia uma praia onde cada grão de areia pudesse representar
um pedaço bi partidarizado de toda eloquência frenética que acometia aqueles
instantes. Lembrou-se do bazar dos sonhos perdidos, aquele onde os relógios
rodam para trás e as escadas fogem dos pés... Mas quantos nomes, cores e
tamanhos assumira a Princesa quase dez anos depois? Parecia uma memória de
vidas passadas, mas era assim que sua consciência bailava sobre o ritmo das
águas negras e geladas daquele mar profundo que pedia-lhe: mergulha. Ele podia
apenas escolher não pensar nisso, mas a involuntariedade do seu desejo lhe
dominava mais e mais a cada tragada e cada gole seco do uísque diluído. Até que
o cigarro amargou, quando apercebeu-se da piúba miudinha entre os dedos
nicotinizados quase inertes, olhou pela janela que nem existia e viu que estava
preso numa masmorra do castelo da Princesa. Não sabia se debaixo da água ou por
cima da areia, já não sentia o pulmão e era... desesperador. Viu locas, pensou
nos perfumes, espelhos, flores e serenatas e todas aquelas lembranças agrediam
seu córtex pré frontal. Lembrou ainda que havia na geladeira uma taça com
morangos, foi recuperá-los mas estavam mofados. Correu a vista pelo lar e a
parede amarela se entrelaçava com a parede de pedra causando-lhe uma sensação
obtusa de paralelismo temporal e espacial. Ouviu ao longe uma voz que
profetizava o tempo semelhante a um rio que corre perenemente e teve mais medo
ainda. Teve medo de ver o corpo distendido e soterrado nos escaninhos da alma
embalsamada porque no fundo sabia que exumar cadáver fede.
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