Passando pelo conhecido beco da lama, a
caminho do centro, encontro por ocasião da feira livre, um grupo de
pessoas em direção oposta que seguem caminhando. Ao aproximar-me delas,
ouço com clareza uma delas, de aspecto franzino e cabelos preso, dizer:
“Tá vendo como Deus é bom! Ele agora está condenado a uma vida boceta,
preso numa cadeira de rodas”. Segui meu caminho sem olhar pra trás, numa
inútil tentativa em decodificar por mera curiosidade quem seriam os
andarilhos que ao longe se distanciavam. Mas segui, e segui a passos
rasos pensando nas condições de produção afetiva que moviam aquelas
pessoas, em especial a personagem cuja fala de baixo calão não me deixou
indiferente. Vivemos um tempo, onde as pessoas preocupadas consigo
mesmas esperam que o mundo gire em torno de si. Vivemos um tempo onde
pessoas buscam em seu Deus um senso de justiça antropomorfizado por suas
ideias. Ao ouvir, e gravar, o enunciado, apercebo-me do tamanho da fé
de uma pessoa dessas que atribui a Deus o fato de uma pessoa
encontrar-se fadada a uma vida dependente. O Cristianismo existe há mais
de dois mil anos para nos mostrar que o Cordeiro de Deus veio pacificar
o Deus vingativo de Moises e Abraão. Mas a ideia de um Deus vingativo
ainda rege o ortodoxo Talião que aquietam as pessoas que tem sede de
justiça. Tenho dificuldades, muitas, em interpretar os ensinamentos do
Cristo dessa maneira. Dificuldades estas, advindas da fé raciocinada que
me dá jurisdição de minhas escolhas. Se eu fiz por algo merecer, por
algo receberei tal qual o semeador colhe aquilo que planta, sem
necessariamente atribuir a Deus a responsabilidade de sua colheita.
Contudo, não sabendo do que se tratava, associei a problemas afetivos e
me pus a pensar quantos de nós ainda não vivem às margens desse
pensamento, nas periferias dos ensinamentos de Jesus ou do amor ao
próximo. As máximas do Evangelho, ainda hoje não compreendidas e
praticadas escaninham-se na afetividade deturpada que feito cólera
degenera de maneira inconsolável os homens. A este respeito, enuncia o
poeta sobre a hecatombe do pseudo amor entre os homens, responsável
pelos flagelos da humanidade. Quantas pessoas não cometeram suicido por
causa de uma afetividade deturpada? Quantas lágrimas não são por dia
derramadas por causa de uma afetividade deturpada? Esses e muitos outros
questionamentos deveriam anteceder os julgamentos que por vezes fazemos
atribuindo a uma força poderosamente invisível as falhas nossas, seja
por desencargo de consciência ou sede de vingança, o que é um tanto
diferente de justiça. Pensem nisso, só um pouquinho...