Quando a nesga luz dos primeiros raios do sol de
abril tocou-lhe o rosto, ele passou a nuance da mão no lado esquerdo da face,
como de costume, para sentir-se. Ao tocar-se, ele então percebeu que havia
acordado e que tudo permanecia exatamente nos mesmos lugares: a ingazeira fronte
ao paladium central que fazia sombra por volta das 15:20 num banco lateralizado
onde costumeiramente saboreava um sorvete de maçã, a senhorinha de estatura
mediana que passava nas primeiras horas com um maço de flores para decorar o
túmulo do marido, os alternativos na rua por trás que anunciavam freada brusca
na parada central e ele.
Sim, ele também estava ali, talvez por pouco não
fizesse parte do cenário. Não fosse então à necessidade de contar sua história,
ele preferia estar emoldurando a rua para os cegos e surdos por opção. É que na
noite passada, ele havia discutido e saiu para pensar. Na profusão de
pensamentos desalinhados às verdades alheias, ele sucumbia suas subjetividades
para entender a rotatividade transversal dos sentidos múltiplos que movem seu
mundo, e o movem também. Entender, sempre lhe custara algumas rugas, talvez a
despeito da idade que ele apenas queria ter, ele hoje achasse mais conveniente culpar
as idiossincrasias alheias, que por vezes às custas das patologias refratas em
seu próprio espelho se culpava também.
É que todo mundo se traduz, nem que seja no silencio.
Pois foi que ao pensar nisso, os holofotes da difusora rural, ali na mesma
praça, tocou um bolero, certamente, depois da revoada de andorinhas, o primeiro
som naquele cenário capenga num dia sem data para não virar passado. Aliás, o
passado era algo que o incomodava profundamente. Ele trazia na expressão facial
mais que o aspecto pálido e fulgente das 12 horas passadas na praça, mas a visível
revelação de pânico oriunda dos calendários idos.
Pensando nisso, ele até sentiu fome, e como há alguns
passos havia uma lanchonete, o cheiro de café o seduzia tanto quanto as ancas
da mulher que destruiu a sua vida. Mas ele não gostava muito de falar nela, ela
fazia parte dos calendários idos que lhe causava desconforto. Então em meio ao
ronco de sua tripa rainha, ele levantou-se para ir de encontro ao café, mas ao
levantar, viu que tinha adormecido sob um jornal velho. Ele podia ter ignorado
aquele pedaço de papel amassado que não servia mais nem para embrulhar peixe,
mas resolveu abrir e pôde perceber que na primeira página havia uma foto
convite de casamento: sorriso estampado. Quase que estático, ele deixou cair o
papel e o vento levou, quisera tivesse levado-o, ou seu músculo involuntário
que naquele instante parecia falar mais alto que o ronco da barriga. Ele
levantou-se e, a caminho do café, entendeu porque houvera discutido na noite
passada, pois o motivo, à ele não revelado, seria um outro cara na jogada. Um
casamento marcado e reportado nos jornais.
Ele se sentiu miseravelmente pequeno, traído,
incompreendido e até diminuído diante de seus sonhos. Mas seus sonhos não
importavam a ninguém, muito menos a dona do café, a ela, interessava que ele
tive na carteira 2,50 para pagar o café com tapioca. Ele já estava bem próximo
do café quando do seu bolso saia um som que dizia “sou teu céu, o teu inferno,
a tua calma...”. Não era ninguém, era seu desafeto chamando ao celular. Ele não
atendeu, e sem perceber que ela estava no café. Num passo mal dado tropeçou,
caiu e bateu com a cabeça num boeiro. Ao voltar a si, já no café e sem fome,
ele havia sido socorrido. Há essa altura da narrativa, pouco importa por quem.
Ele apenas voltou a passar a nuance da mão no rosto para sentir-se vivo e
percebeu que no bolso da camisa havia uma caneta presa a um pedaço de papel
carta. Ele queria na noite passada ter começado a escrever uma história, uma
nova história, quem sabe sua própria história, ao menos em papel. Se é que tudo
não vira papel, um dia haja vista que depois de encontros e despedidas, pouco
importava o conteúdo daquele futuro pergaminho. E, como forma de gratidão,
esquecido dos roncos estomacais, ele tomou um copo d’água, levantou-se e
entregou o papel à mão mais próxima de si, era tudo que tinha sobrado de sua
vida miserável e não podia ir mais longe. Antes que lhe perguntassem do que se
tratava ele disse que no infinito universo do papel em branco, escrever uma
história era um grande desafio e que não cabia a pessoas covardes.
De volta ao mesmo banco, lá ficou mergulhado em seu
infinito particular até as 15:20, quando sem sorvete de maçã, ouviu a terceira
badalada na Catedral da Conceição e uma marcha nupcial que decantava a entrada
de uma moça bonita de ancas apreciáveis, vestida de noiva com uma calda longa e
um maço de flores feito buquê, talvez mais belos que os da senhorinha que
passou pela praça nas primeiras horas do dia. Ele sequer teve forças para se
levantar e ir a porta da Igreja. Mas o narrador acredita que essa fraqueza fora
providencial. Costumeiramente dado ao cultivo de não ter idade para certas
coisas, simplesmente permaneceu onde estava, vendo ao longe o condor que
circulava minimalista a torre da Catedral em busca de um pedaço de papel que
voava alto, um pedaço de papel que não era o jornal velho que servira de forro
na noite passada, nem também era seu conto entregue a uma mão desconhecida, mas
ele mesmo, porque então não percebendo, depois de mais um tombo, ele tinha apenas virado notícia.
Notícia que o vento levou e o conto não acabou...
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