Ouvir sua própria voz em silêncio, nem de perto nem de longe parece ser uma atividade normal, instintiva, como a de praticar um ato insano. A voz da consciência geralmente perturba e ensurdece um pavilhão auditivo dotado de razão, medo ou uma emoção qualquer que lhes pareça necessária à alguma coisa.
Em O Coração Denunciador, Edgar Allan Poe nos apresenta uma narrativa em primeira pessoa, onde conta a história de um crime. Há por excelência em seus escritos uma gama de simbologias mistificadoras que atenuam as possíveis justificativas do ato criminal. Contudo, em se tratando de uma narrativa sombria, gótica, de estilo macabro, vou me deter a falar desse cenário como produção discursiva à desencadear a conexão espacial com o perturbador comportamento do personagem.
Um cenário de descrição aparentemente natural torna-se um pesadelo, quando um homem, visivelmente perturbado por um olho de um velho ao qual estaria sob seus cuidados, resolve por isso assassiná-lo. A figura simbólica do olho representa para esta mente perturbada um medo avassalador, causando-lhe um pavor singular, capaz de maquiavelizar com presteza e dedicação um crime do qual o próprio assassino se envaidece.
Na casa onde acontecem os fatos, o narrador ilustra com todas as formas, tamanhos e cores passagens que transportam nosso imaginário a visualizar a porta, as frestas da janela, a luz da lanterna e olho do velho. Elementos essencialmente naturais de uma narrativa qualquer, que o Poe transforma em pontos de referência nas cenas de terror.
Movia-a lentamente. . . muito… muito lentamente, a fim de não perturbar o sono do velho. Levava uma hora para colocar a cabeça inteira além da abertura, até podê-lo ver deitado na cama. Ah! Um louco seria precavido assim? E depois quando minha cabeça estava bem dentro do quarto, eu abria a tampa da lanterna cautelosamente. . - oh, bem cautelosamente! Sim, cautelosamente (porque a dobradiça rangia) . . . abria-a só até permitir que apenas um débil raio de luz caísse sobre o olho de abutre. E isto eu fiz durante sete longas noites. . . sempre precisamente a meia-noite. . . e sempre encontrei o olho fechado. Assim, era impossível fazer a minha tarefa, porque não era o velho que me perturbava, mas seu olho diabólico (POE – 2007, pág. 175)
Percebe-se assim, que elementos simples, assumem papéis indispensáveis para impactar o leitor ante um cenário agora eminentemente macabro. Em um texto não gótico, por exemplo, a porta poderia significar uma saída, a lanterna, uma luz, o olho azul não necessariamente algo que causasse pânico, terror e aflição comparado ao de um abutre (figurando miséria e morte) em tonalidades alegóricas que são características desse estilo de texto. Este sem dúvida é um dos traços mais marcantes do texto gótico: tornar sombrio elementos que possam emoldurar o pavor semântico contido na grafia.
O assassino, notadamente insano, tenta nos convencer retoricamente de sua lucidez logo no início do texto, desmembrando com cautela os planos e as tentativas de assassinar o velho de olho azul. Assim, ele reveste-se da clássica psicopatia descortinando os fatos sem nenhum remorso.
Este conto, conta somente com dois personagens importantes, o narrador (em primeira pessoa), que é o próprio assassino e a vítima. Somente depois do crime perfeito ter sido executado, aparecem mais dois personagens: o vizinho que denuncia um grito ouvido na noite passada, e a própria polícia, que somente chega depois que nenhum vestígio poderá mais ser conclusivo.
Nesta perspectiva, Poe nos apresenta a construção razoável de uma ciência alternativa, nesse caso a do próprio narrador, que além de executar o crime perfeito, torna-se superior à polícia, uma vez que esta, reveste-se de incapacidade, facilmente convencida pelo gentil assassino ao responder com segurança todas as perguntas do inquérito sem dar margem nenhuma à sua culpa.
Com isso, Poe nos concede um assassino como protagonista e ao mesmo tempo como um herói, um personagem perfeito em sua composição maléfica. Minimizando ainda, o que tradicionalmente seria exaltado: o bem (a polícia que viria punir o mal, o assassino).
Somente no final, por se tratar de uma narrativa em primeira pessoa, o leitor consegue perceber a sutileza, a objetividade da insanidade do assassino, uma vez que este mesmo, se entrega a polícia, por perturba-se ao ouvir as batidas do coração do finado, que depois de esquartejado, fora enterrado no assoalho da própria casa onde num dado instante encontrava-se a incapacitada polícia com o fiel defunto sob seus narizes, tal qual encontravam-se segundo Caetano Veloso, metaforicamente os chapados aos narizes dos tropicalistas em 1984.
O Coração Denunciador não vem apenas contribuir com estilo gótico do Século XIX, mas despertar nos leitores uma tensão para além de racional, psicológica, quando através da narrativa e dos elementos narrativos enunciados, Poe põe de encontro às concepções científicas pré estabelecidas uma lógica sobrenatural que resultam num sobrenatural fantástico, iluminando as possibilidades de se contar uma história complexa de forma simples e direta causando um verdadeiro horror psicológico em nossas mentes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário